segunda-feira, 26 de setembro de 2011


CORDEL ENCANTADO, UM BÁLSAMO DA TELEDRAMARTUGIA



A Primavera chegou no Alto da Boa Vista, no Rio, reduto do Tio Zuzu. Ao redor da casa, um caleidoscópio de ipês coloridos: brancos, amarelos, roxos; o ar puro transcendendo de seus ramos em flor. Da janela em frente à escrivaninha onde ele costuma passar a maior parte do tempo escrevendo, como a dar-lhe inspiração, lá estão os galhos germinados com floradas em forma de buquês, agregadas umas às outras, cenário perfeito para abrigar os pássaros com a sua cantoria matinal.

É dali que ele também acompanha a programação da televisão, na tela de LCD 42”, acomodada no centro da imensa estante, misto de biblioteca e galeria de fotos. Já comentei aqui que ele adora todo tipo de parafernália eletrônica, e a sua TV hoje é uma das diversões favoritas. É nela que ele se deleita assistindo aos velhos clássicos do cinema, sua paixão, que fazem parte de uma vasta videoteca formada ao longo dos anos.

Essa a razão, aliás, do Tio Zuzu não ter o costume de acompanhar novelas, tanto mais as das seis, sempre infantis e açucaradas para alguém de gosto artístico refinado.

Mas, de tanto ler e ouvir comentários favoráveis a CORDEL ENCANTADO, dizendo ser essa uma novela inovadora, um marco no gênero, resolveu dar uma chance ao folhetim. O título o fazia lembrar-se dos cordelistas que conheceu quando esteve na Paraíba; com seu faro de jornalista, não deixou de registrar a rotina daqueles que recitando versos pelas ruas de forma melodiosa e cadenciada, acompanhados da viola, iam levando a poesia de raiz por onde passavam. Ainda guarda os livretos de cordel que comprou naquela época, escritos em forma rimada, ilustrados com xilogravuras, que hoje fazem parte de sua biblioteca. Dentre eles tem um que fala de forma singela da Primavera:

Primavera está chegando
Já sinto a canção no ar
Toda a vida a palpitar
Um passarinho cantando
O sol lá no céu brilhando,
Com toda luz e fulgor
Toda a natureza é cor
Não há nem sinal de luto
Morre a flor e nasce o fruto
No lugar que tinha a flor

E foi assim que ele se deixou envolver pela trama tendo como pano de fundo, o reino de Seráfia (reino europeu) e Brogodó (no Sertão).

Era uma vez, uma princesa chamada Aurora (Bianca Bin), de um reino muito muito distante que, assim como a Aurora dos contos de fadas, permaneceu por longos anos separada de seu reino e do pai, o bondoso rei Augusto (Carmo Della Vecchia). Enquanto vivia no sertão brasileiro, ao invés de adormecida, a arretada menina via o tempo passar dançando forró. Apaixonou-se por Jesuíno (Cauã Reymond), filho de cangaceiro, um Robin Hood do sertão que foi parar na congada. Mas lá, no outro lado do mundo, à sua espera estava o jovem e belo Felipe (Jayme Matarazzo), de grande parecença com o príncipe encantado de A Bela Adormecida, seu xará. Esse o início de tudo, na perfeita transposição de cangaceiros do nordeste brasileiro para os contos de fadas.

Aos poucos, e a cada capítulo, a ligação improvável, mas convincente, entre os dois mundos aconteceu. Coerente e lógico, e ao mesmo tempo fantástico, o folhetim teve o seu desenrolar até chegar aos dias de hoje, no capítulo final, na crença do amor eterno, que tudo pode e supera, tendo como cenário uma feira nordestina, onde barraquinhas coloridas e música não podiam faltar.

Num primeiro momento, é preciso que se diga, o maior impacto sobre o Tio Zuzu foi a qualidade das imagens. A textura e a profundidade das cenas, gravadas com modernas câmeras digitais, eram de impressionar até aos menos entendidos em arte visual, ainda mais se vistas numa tela de alta definição. O mesmo se diga quanto ao desempenho dos atores, cenários, figurinos, luz, tudo impecável.

Quando se deu conta, pronto: ele já havia sido sugado pela bela história de capa e espada!

O que se seguiu, foi uma viagem em capítulos da ficção aos volumes da História. Lá estavam os clássicos europeus como “Os Três Mosqueteiros”, “O Homem da Máscara de Ferro” e “Cyrano de Bergerac” batizado ali como Setembrino (Glicério Rosário), ao lado de Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto e Ariano Suassuna, na forma de cordel.

Os mocinhos da trama não foram apenas um casal comum repetindo melosas cenas românticas, mas dois heróis pra se lembrar, no melhor estilo Romeu e Julieta que o agreste poderia recriar. Ah, se Shakespeare tivesse sido cordelista, ou, quem sabe, à sua maneira, ele não o fosse:

Mas, que luz é essa

que ali aparece, naquela janela?
A janela é o oriente,

e Julieta o sol.
Sobe, belo astro,

sobe e mata de inveja a pálida lua


Entrelaçada ao jovem casal, eis que surge Doralice (Nathália Dill), personagem com a composição mais rica do folhetim. Filha do prefeito e estudada, por amor e idealismo, chegou a se disfarçar de homem para fazer parte do bando de justiceiros liderados por Jesuíno. O mito da donzela guerreira! Como não lembrar do inesquecível Diadorim de Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa? À medida que os capítulos iam se sucedendo e o tempo passando, quando já despojada dos trajes do cangaço, foi possível ver crescer uma aguerrida Anita Garibaldi do sertão, em sua luta contra a tirania de Timóteo (Bruno Gagliasso).

E a sedutora e perigosa Duquesa Úrsula (Débora Bloch), então? Esta bem que poderia ser uma prima distante da Marquesa de Merteuil, de Ligações Perigosas, ou da bruxa má de A Bela Adormecida (do escritor francês Charles Perrault) com suas poções mágicas, condenando a bela princesa Aurora ao sono eterno.

Para uma Duquesa má, Nicolau (Luiz Fernando Guimarães), o seu aio e criado, não poderia ser outro do que alguém moldado na mesma forma do clássico mordomo palaciano, com um rasgo - é claro - do caçador de Branca de Neve, encarregado de lhe satisfazer os caprichos e sempre solícito, tendo a difícil missão de entregar o coração da princesa a sua ama e senhora.

Os caminhos da ficção e a realidade se cruzaram diante da destemida jornalista Penélope (Paula Burlamaqui) na sua obstinação em fazer uma reportagem sobre Herculano; tal como Benjamin Abrahão Botto, que nos anos 20 esteve com Lampião e o fotografou.

Aliás, como não ver que Herculano (Domingos Montagner) e Miguézim (o talentoso Matheus Nachtergaele), eram os próprios, Lampião e Antonio Conselheiro!

Não é à toa que, Tio Zuzu, amante da boa literatura desde a meninice, sentiu-se sugado pra dentro daquele cordel, que soube levar com maestria o telespectador para um mundo formado por arquétipos, que exerce grande fascínio e, segundo Jung, faz parte do inconsciente coletivo de todos nós. A linguagem das imagens, dos mitos e símbolos que nos une e se perpetua ao longo dos tempos.

Estava sentado diante do computador pensando no encantamento e magia dos arquétipos, que adoçam a nossa vida desde a mais tenra infância, quando estancou ao ler a notícia de que em São Paulo um menino de dez anos havia atirado na professora e depois se suicidado.

Toda a mata está florida
Já chegou a primavera
Do inverno que tivera
Toda friagem é ida,
Nenhuma árvore despida;
Brilha o sol e faz calor
Toda a natureza é cor
Mas o tempo resoluto
Morre a flor e nasce o fruto
No lugar que tinha a flor


O que acontece quando da flor não nasce o fruto?, pensou.

Parou para relembrar os tristes acontecimentos envolvendo crianças e jovens (jovens consumindo drogas cada vez mais cedo, acidentes de carro fatais por conta da bebida que rola nas baladas, crianças atacando professores em sala de aula,...) e, se deu conta de que o mundo infantil está se tornando cinzento e perdendo as suas cores. Está carente do fantástico mundo dos contos de fadas, das divertidas histórias de Emília, Narizinho e Pedrinho, da sempre viva literatura de cordel.

O que está havendo com as crianças de hoje, se elas são a Primavera?

À medida que as crianças nos centros urbanos crescem cercadas por muros altos e grades, seus medos também vão crescendo e desorientadas não sabem o que fazer com eles ou como enfrentá-los: vê o pai com medo de perder o emprego, a mãe com medo de ser assaltada; ela própria tem medo de que os pais se separem, medo de fracassar e tirar notas baixas na escola....

Por que as crianças estão deixando de sonhar?

Os medos são os mesmos de sempre. Mas, as histórias hoje são outras. A realidade mudou. Agora não mais o pai, a mãe, a avó ou a madrinha lendo os clássicos de La Fontainne ou de Christian Andersen para os filhos, netos ou afilhados, mas a criança construindo sozinha histórias ao leve toque do apertar os botões do controle. O lugar dos contos de fadas, com todos os seus arquétipos, está sendo ocupado pelos videogames, estes cada vez mais violentos, essa a grande verdade. Agora não mais a certeza de um e viveram felizes para sempre”.

Na realidade artificial criada, o esconderijo para a criança dar vazão aos seus medos, angústias e inseguranças; lá ela tudo pode: atropela, explode carros, destrói cidades, lança torpedos sobre o inimigo, atira, mata de várias maneiras, tudo é válido desde que o alvo seja destruído e eliminado. O objetivo é um só: aniquilar o inimigo; todos lutam on line contra todos, e quem for o melhor vence e permanece no jogo. Só os mais fortes sobrevivem e pontuam nesse darwinismo virtual.

De modo que, a cada etapa vencida, na busca inconsciente de segurança e de sentir-se forte e capaz, a violência vai se incorporando ao cotidiano e universo infantil e o mundo ali projetado, começa a se apossar do coração e da mente da criança.

O problema surge quando isso entra em choque com a realidade.

Talvez aí esteja a explicação do porque um menino de dez anos, de boa família, bom filho e bom aluno, após atirar na professora com a arma do pai, sem qualquer motivo aparente, acabe se suicidando. No mundo real, a arma fere, o sangue é de verdade, o perigo da morte é real, não dá pra reiniciar ou voltar pra fase anterior, ou, deletar os medos. Game over. Você perdeu!

A história do menino que virou notícia em todos os canais de televisão e na internet. A tragédia em meio ao cotidiano, às cores da Primavera e ao último capítulo de CORDEL ENCANTADO.

Quando a infância não conhece a fantasia, o escape, a recuperação e o consolo, e no seu lugar, a violência ganha vida própria, minando a esperança de futuro, algo está errado com todos nós.

Estamos nos acostumando cada vez mais com a violência, ela está se incorporando no dia-a-dia como algo normal, fazendo parte do nosso cotidiano e da paisagem. Tanto é que assistir a filmes, seriados, programas policialescos de quinta, novelas, realities que retratam o que há de pior no ser humano, tornou-se uma diversão com direito a poltrona e pipoca.

Nesse sentido, CORDEL ENCANTADO foi um bálsamo!


Mesmo sem a flor morrer
Pode seu fruto doar...
Que vai para sempre amar
Desde antes de nascer,
Como o que estou a ver
Em teus braços com amor
Com alegria e fulgor,
Um valioso produto.
Morre a flor, mas nasce o fruto,
No lugar que tinha a flor!
(Camélia La Branca)






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