quarta-feira, 23 de abril de 2014





A MORAL DA HISTÓRIA DO MENINO BERNARDO






Há poucos dias atrás comemoramos a Páscoa em família; ovos de chocolate coloridos, Sábado de Aleluia, coelho branquinho mantendo vivo e presente o espírito da transformação e renascimento, que faz parte da vida.

Tio Zuzu sempre nutriu um sentimento agridoce nessa data, desde a sua infância.

- Talvez seja essa a essência da Páscoa, comentava com Leninha durante o almoço.

- Tio, por mais doloroso que seja pensar na crucificação de Cristo, há beleza em sua morte e ressurreição.  Por trás da tristeza e do luto, há o belo, a esperança e o divino. Penso que essa é a chama que permanece viva no coração daqueles que creem, acrescentou Leninha.

Foi refletindo sobre esse breve diálogo, que ele embarcou no avião de volta para casa, rumo ao Rio de Janeiro. Já acomodado na poltrona, pegou a revista VEJA; seus olhos se detiveram na matéria de capa: “AS FACES DO MAL” com o rosto de um belo, jovem e bem sucedido casal, pai e madrasta do menino Bernardo Uglione Boldrini.

Um sentimento de luto e tristeza o invadiu ao tentar imaginar os últimos momentos de vida daquele garotinho magro, sorridente, que gostava de distribuir abraços.

- Pobre menino rico, lamentava Tio Zuzu ao ler sobre o anseio de Bernardo de ser amado, do seu gosto pela escola onde se sentia mais seguro que em casa, da coragem que o fez procurar o juiz da cidade para pedir novos pais, da solidão em família e do sorriso doído que marcaram a semana, a cidade de Três Passos e todo um país. 

O menino que perambulava pelas ruas depois da escola à procura de um lar, de uma família que o acolhesse, porque era rejeitado e maltratado pela madrasta e o pai fingia não ver, metáfora de um sonho acalentado desde a repentina morte da mãe há quatro anos.

- Triste e trágica história de Páscoa, meditava Tio Zuzu enquanto o avião taxiava na pista para fazer a decolagem.

Não dá para negar que sua partida, antes que alguém fizesse algo por ele, deixa um gosto amargo em todos nós. O certo é que a morte não só interrompeu bruscamente a vida daquele menino de apenas onze anos de idade, como acabou revelando o quanto podemos ser omissos e surdos diante de um pedido de ajuda. 

À medida que lia o relato e os detalhes dos depoimentos, pensava:

- Que tristeza! Todos que poderiam de alguma maneira ter resgatado o menino desse lar doente, falharam. Falhou o juiz ao achar que assim como num conto de fadas, todos poderiam viver felizes para sempre naquela casa. Falhou o Ministério Público ao concordar com o juiz, apesar do apelo e pedido de socorro do corajoso menino. Falhou a escola por não levar ao conhecimento do Conselho Tutelar o abandono e descaso com que ele era tratado pelo pai e pela madrasta, mesmo sabendo que muitas vezes ficava o dia inteiro na escola por não ter para onde ir. Falharam os vizinhos, que mesmo testemunhando os maus-tratos e vendo que ele ficava horas e horas sentado na calçada até o pai chegar, por ser impedido de entrar em casa pela madrasta, nada fizeram. Falhou a família que mesmo sabendo que a madrasta não o queria como filho ou como enteado, preferiu não se envolver. E finalmente, com um enorme vazio no peito, Tio Zuzu concluiu: - Falhamos nós, na qualidade de pessoas, quando silenciamos e cruzamos os braços para não nos comprometermos diante de situações como essa.

Por fim levantou a cabeça lentamente e olhou em direção às densas nuvens brancas, respirando profundamente para recuperar o fôlego.

Como não desmoronar? Como não sentir dor mesmo sem ter conhecido o Bernardo? Quais seriam seus sonhos de menino? Como não lamentar esse destino tão ingrato? Como não se comover?

- Admirável Mundo Novo, de Aldous Husley, lhe veio à mente. O livro publicado em 1932 que retrata uma era na qual os laços de parentesco são desencorajados, as palavras “pai” e “mãe” são ditas com constrangimento e o conceito de família não existe, porque as pessoas se identificam mais com a classe a que pertencem do que com os laços familiares.

- Estaremos caminhando para isso??? Uma sociedade centrada no indivíduo e suas posses e no consumo de drogas, "soma", assim chamada no livro, para dissipar os efeitos colaterais da insegurança e dúvidas dessa ruptura???

Perdido em seu devaneio, fechou a revista. Por breves instantes recordou a rápida passagem por São Paulo para comemorar a Páscoa com a Leninha,  Maria Rita, Val, Paulo o pai do Dudu... lembrou de quando eles, ainda crianças, se reuniam no sítio em São Pedro para a caça dos ovinhos de chocolate escondidos entre os arbustos do jardim, tradição até hoje mantida de uma forma diferente, mais urbana, mas sem perder o significado da celebração.

- Não existe um Admirável Mundo Novo sem as crenças, valores e tradições antigas. Somos construídos a partir deles, a renovação de cada um, da família, está em manter essa chama acessa através das gerações. O que acalenta e fortalece a família e as pessoas é a sua história e as suas memórias, se elas se perdem, fica apenas o ovo de chocolate oco por dentro, uma perda irreparável, concluiu enquanto o avião se preparava para a aterrisagem .

Tio Zuzu está certo em suas reflexões. Não há o que se compare ao beijo de um filho, ao olhar terno de uma mãe ou ao abraço apertado de um pai. Mesmo quando a raiva e a mágoa parecerem dominar, a sensação de prazer, bem-estar e bem-querer prevalecerá. Sem isso, perde-se a candura e a doação, e, a morbidez e o egoísmo se instalam.

A história de Bernardo é construída disso: ganância, vaidade, soberba, egolatria... desamor. “A FACE DO MAL”, e deveria se acrescentar, “E UM GRITO DE SOCORRO”. O mais triste é que ele se foi buscando aceitação, carinho e amor dentro de casa… e nunca saberá que ele não era e nunca foi o problema.

Hoje ele é uma estrela no firmamento, que o seu silêncio sirva para que outros Bernardos não venham a ter o mesmo final trágico pela omissão daqueles que poderiam ter agido e não o fizeram; que cada um possa preencher a lacuna e o vazio que ele deixou para assim chegar a uma nova realidade, que nos leve a um novo patamar, mais humano e solidário, resgatando o belo, a esperança e o divino que há em nós.





Se uma estrela aparecer
Não esconda seu olhar
Dê a ela uma chance de brilhar...

Shadow/Mariasun



Licença Creative CommonsO trabalho A MORAL DA HISTÓRIA DO MENINO BERNARDO de MARIASUN MONTAÑÉS está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.



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