quinta-feira, 14 de março de 2019




A TRAGÉDIA NA ESCOLA DE SUZANO, SÃO PAULO


Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?...

Abro esta postagem com “A Flor e a Náusea” de Carlos Drummond de Andrade. Alguns parágrafos estão permeados por trechos dessa poesia. Não é por acaso. Creio que em meio a tantas especulações sobre o que será narrado, talvez seja o que mais se aproxime da realidade, nada poética.

O dia 13 de março amanheceu em São Paulo com nuvens no céu. Ao olhar para o alto, era quase certo imaginar se seriam sinal de chuva.

Pingos... chuva... água... água em fúria que, no dia anterior, causou quatorze mortes, deixou várias famílias ao desabrigo e um cenário de desolação nas principais cidades da grande São Paulo.

Em janeiro, a quebra da barragem em Brumadinho; em março, as “águas de março” em São Paulo... as águas protagonizando um ano que, em 60 dias, já está marcado pelas sucessivas tragédias.

Enquanto os paulistas contavam os mortos, aguardavam a água baixar, calculavam os prejuízos e se recuperavam da calamidade, foram surpreendidos por uma nova notícia ainda mais aterradora: Dois atiradores, Luiz e Guilherme, entraram atirando na escola estadual Raul Brasil em Suzano, causando perplexidade e morte. O fogo... o fogo no Centro de Treinamento do Flamengo... agora, o fogo das armas de fogo... atingindo mais uma vez nossas crianças.

Nesse dia de uma manhã ensolarada e quente, jovens estavam no recreio. Sorrindo, jogando bola, conversando, dividindo o lanche, como todos os dias costumavam fazer... até que dois ex-alunos da escola, chegaram trazendo medo e terror. Algo inimaginável quando a gente lembra, com carinho e um aperto no coração de tanta saudade, dos professores dos amigos e da escola que eternizaram a nossa infância.

De repente, correria, gritos, pedidos de socorro, choro incontido... Não havia um alvo específico. Apenas, o prazer mórbido e difuso do sangue escorrendo e de vidas agonizando, para - a seguir - tirarem a própria vida. Dentre as vítimas, cinco estudantes, a coordenadora pedagógica e a inspetora escolar, todos mortos, além dos dois atiradores e o tio de um deles, mais dez alunos feridos.

Diante desse horror, nos perguntamos: Por quê fizeram isso?!? Por quê escolheram essa escola?!? O que os motivou a agir com tanta perversidade?!?

Bullying? Jogos violentos? A sociedade? Filmes? Redes Sociais? Desamor? Revolta? Decreto Presidencial que liberou o uso de armas? “Posso, sem armas, revoltar-me?”

Explicações não faltaram. A bancada da “bala” do Congresso, alguns políticos e filhinhos do papai não tardaram em defender a liberação do porte de armas no país, com justificativas torpes como a de que se os professores estivessem armados, o número de vítimas seria menor. Como definir a frieza e o oportunismo de determinadas pessoas que, de forma equivocada, se aproveitam de um drama que impactou o país para explorá-lo politicamente?!?

Não, minha gente, o que houve não tem relação direta com o Decreto sobre armas. Apurou-se que há meses, há mais de um ano, os atiradores planejavam o ataque, traçando inclusive o momento oportuno: a hora do recreio, onde haveria mais crianças agrupadas. Além da arma de fogo, carregavam machadinho, faca, besta, coquetéis molotov caseiros. Onde tiveram acesso a uma arma de fogo e a um arco e flecha?!? Por outro lado, também não é correto dizer que professores armados poderiam reduzir os danos. Pelo contrário. Uma coisa é a situação controlada num stand de tiro, outra, é o uso da arma numa situação de caos generalizado com alunos gritando e correndo, por quem não tem as horas de treino de um policial. Melhor seria que houvesse na escola um controle de segurança eficaz de quem entra e quem sai, e, os portões permanecessem fechados, além de um policiamento ostensivo no entorno.

Quanto à questão da liberação de armas, em havendo um número maior nas mãos da população, aumenta a probabilidade de eventos como esse se repetirem, sim.

... Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase...

As coisas sem ênfase... que triste é o mundo quando perde o sentido e as cores!!! O que faz com que dois jovens, um de 17 e outro de 25 anos, se reconheçam na solidão de uma vida vazia, e, escolham a violência como caminho e a morte como redenção?!?

A mente humana é complexa e os impulsos agressivos quando encontram os “muros surdos”, podem ser devastadores.

Ninguém pratica um ato dessa envergadura sem dar algum sinal. Isolamento da família e do convívio social, irritabilidade, descontrole diante dos “nãos”, impaciência, estado taciturno, alterações de humor e de comportamento, inclusive na forma de se vestir, higiene, insônia, alimentação, horas e horas... mais de 24 horas na internet, não deixam de ser sinais visíveis e pedidos de ajuda.

Quando os jovens não encontram essa ajuda e apoio nas pessoas próximas ou a abordagem destas é feita ou vista como crítica e censura, eles tendem a fazê-lo fora desse ambiente.

E é aí que mora o perigo!!!
“O sol consola os doentes mas não os renova”...

... Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem...

“Soletram o mundo, sabendo que o perdem”...

Se os jovens sentem perder o chão e não encontram onde se escorar ou amparar, na atualidade buscam refúgio na internet. Em alguns casos, esse passa a ser seu mundo perfeito e fonte de prazer. A realidade não consegue competir com o mundo virtual. Por essa razão, há quem culpe os filmes e jogos violentos por atos de extrema violência.

Não é certo. Um jogo virtual não tem o poder de alterar personalidades a esse ponto.

O mais provável é que já havendo um ego doente, fragmentado e deteriorado, como no caso de Luiz e Guilherme, isso os motive a escolher determinado tipo de jogo para dar vazão aos seus instintos mais agressivos e destrutivos.

Pontuar num jogo e mudar de fase pode ser extremamente prazeroso. O jogador, ao invés do fracasso, entra em contato com um personagem imbatível e vitorioso, enquanto as frustrações deixam de existir. Por essa razão, pode ser altamente viciante. Mas apenas isso. A imagem de Guilherme postada em sua rede social pouco antes de ir para a escola, vestido como um personagem de videogame (caveira, bota calça jaqueta pretas, vários tipos de arma como a besta) é reflexo da dissociação de sua frágil personalidade.

Quanto mais um jovem sente “perder o mundo” no sentido de aceitação e adequação, mais solitário e vulnerável ele está para cair nas armadilhas da internet.

... Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima...

Como é que o menino “põe fogo em tudo”?!?

Há fóruns que ensinam como fazê-lo. Eles se encontram na Dark Web. O espaço obscuro da internet, cujo administrador age no anonimato.

É assim que jovens são recrutados pelo ISIS e outros são chamados para “missões” nos centros urbanos, ou, para entrar no jogo da Baleia Azul. Quem não se lembra?!?  O jogo consistia em 50 desafios enviados por um “curador” anônimo, cujo objetivo final era o jogador tirar a própria vida. Muitos jovens se suicidaram pelo mundo. O método é o mesmo.

Esses fóruns são radicais e se aproveitam da fragilidade dos mais vulneráveis, estimulando a revolta, o ódio e a desvalorização da vida. Cada integrante é conhecido como “chan”. A meta é o suicídio, mas não apenas isso, levar o maior número de pessoas junto. O lema?!? “Meu ódio é o melhor de mim”.

Entenda-se isso como quiser: poder de sugestão, convencimento, lavagem cerebral, o fato é que esses grupos estão em atividade para praticar atentados, promover a morte de pessoas e assassinatos em massa por meio de jovens limítrofes e perturbados, sob a promessa de reconhecimento, fama e notoriedade na posteridade.

A Polícia Federal já chegou até alguns deles. Marcelo Valle Silveira Mello, um dos criadores de um desses grupos, foi preso julgado e condenado a mais de 40 anos de prisão e seu site deletado.

Hoje, os atiradores da escola estadual Raul Brasil juntam-se a Wellington, conhecido pelo massacre de Realengo no Rio, na galeria de "heróis" de um grupo anônimo e insano da internet.

Por essa razão, deveria se evitar a divulgação de fotos, nome dos atiradores e imagens do atentado. Propagar isso, só contribui para notabilizar o massacre e chancelar o sucesso das trevas, que atua nas profundezas sombrias do mundo virtual. Chocar e dar visibilidade ao ato é o que buscam para motivar o próximo atirador.

... Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor...

A escolha da escola não foi aleatória, assim como o tio do Guilherme, primeira vítima do massacre. Há afeto, insatisfação, frustração reprimidos e transformados em ódio profundo por aqueles que se sentem invisíveis no mundo.

Ressentimento. Talvez ressentimento seja o mais perto que se possa chegar de uma explicação.

Olhando ao nosso redor a todo momento nos deparamos com pessoas ressentidas. Essa talvez seja a marca do século XXI.

Negros ressentidos com brancos. Pobres da favela ressentidos com quem mora na avenida. Homossexuais ressentidos com héteros. Mulheres ressentidas com homens. Nacionalistas ressentidos com refugiados. Direita ressentida com esquerda, e vice-versa. Anônimos ressentidos nas redes sociais... por tudo.

O inconformismo ao invés de ser a força vital para o aprimoramento e inspiração na busca da superação, tem se transformado em ressentimento diante de uma realidade fragmentada e intolerante... O ressentimento rompe o diálogo e leva à fúria e à violência. É quando a flor é esquecida no asfalto...

Basta acessar as redes sociais para ver hashtags com palavras de ódio, rancor, linchamento de reputações, intimidação, xingamentos diante daqueles quem pensam diferente e têm a coragem de expor o que sentem. Certas palavras como "obscurecer", "mulata", "negra linda", não podem ser ditas, porque agora são ofensivas. A troça e a piada que sempre existiu e as pessoas riam, porque sabiam rir até de si mesmas, hoje recebem o rótulo de bullying. O politicamente correto está fazendo surgir pessoas melindradas e o mundo ficar policialesco, pesado, sem graça. Até um reality show é capaz de se transformar em guerrilha entre fandoms. Acontece que no twitter é possível dar “block” e a pessoa deixa de existir em sua página, no entanto, na vida real não é possível deletá-la... ou é... quando alguém no seu mais oculto silêncio, caminha em direção ao abismo para fugir do odioso mundo, opressor e indecifrável.

... Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Nós somos a flor... Apesar do asfalto, tédio, nojo, ódio... náusea... somos a flor. A própria poesia que nasce contra a vontade do tempo, das misérias e decepções. A flor que guarda dentro de si a força para resistir às adversidades e desabrochar, a única maneira de não sucumbir.






Shadow/Mariasun Montañés


Licença Creative Commons
A TRAGÉDIA NA ESCOLA DE SUZANO, SÃO PAULO, de MARIASUN MONTAÑÉS está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional


Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...