sexta-feira, 18 de março de 2011




AS CEREJEIRAS DO JAPÃO





Tio Zuzu em suas andanças pelo mundo na época de jornalismo, chegou a morar no Japão.

Ainda guarda em sua memória a convivência com um povo gentil e educado, a liberdade de andar pelas calçadas e ruas reluzentes de tão limpas, a beleza de seus templos, a serenidade que paira no ar fruto de uma cultura milenar, além do carinho e admiração dos amigos que ali ficaram, com quem esporadicamente mantém contato pela internet.

Das lembranças daquela época, a florada das cerejeiras talvez seja o espetáculo mais emblemático, que ficou cravado em sua alma forever. Frágeis, elas são passageiras, florescem uma única vez ao ano e duram por apenas alguns efêmeros dias. Suas folhas se vão com a chegada do outono. Os galhos nus enfrentam o inverno para desabrochar em flor na estação seguinte, entre março e abril.

Hoje, ao ver a nova tragédia que se abateu sobre aquele país, Tio Zuzu, como muita gente, se entristece. É um choque a imagem da água escura do tsunami arrasando cidades em contraste com a beleza das cerejeiras em flor.

Na mesa em frente à sacada e diante do computador, cercado pelo verde do Alto da Boa Vista no Rio, tem procurado incansavelmente informações sobre a tragédia, sobre tsunamis e terremotos, usinas nucleares, radiação numa tentativa catártica para entender toda aquela catástrofe e destruição.

Não encontra respostas,
deixando crescer, por instantes, a intensa expectativa que se instala. Pasmo e consternado, após a tragédia, vê na internet a neve caindo sobre os escombros que a terra e a água devastaram. Seu coração se aperta ao pensar nos milhares de desabrigados à mercê do frio e da falta de alimento. Sente-se tocado pela civilidade e dignidade que se vê em cada rosto diante de todo aquele sofrimento, não há revolta, depredações, saques ou violência. De onde vem tanta força e sabedoria?


A flor da cerejeira, Sakura em japonês, é a flor símbolo do Japão. A simbologia é tão intensa que o povo a cultua e respeita como a própria bandeira japonesa ou o hino nacional. Diz a lenda que Sakura faz referência à princesa Sakuya, que teria caído do céu nas proximidades do Monte Fuji, tendo se transformado naquela bela flor. "A floração das cerejeiras" - a mais importante data do calendário nacional do Japão - é um espetáculo natural que leva milhões de pessoas às ruas para comemorar, como se fosse carnaval.  

Tio Zuzu estremece ao pensar na radioatividade, o pior de todos os males. Ela que silenciosamente se espalha pelo ar carregada pelo vento. Não tem cheiro, não tem cor, mas seus efeitos são nefastos para a vida na Terra.

Como estarão os amigos que ali deixou? E suas famílias?
 
Após inúmeras tentativas, na madrugada de ontem, conseguiu estabelecer contato com o Werner, um dos amigos da época em que fazia documentários, radicado no Japão há mais de vinte anos. Sentiu-se tranquilo, ao menos, ele e sua família estavam bem.

Em seu blog, o BLOGANDO COM O TIO ZUZU, postou o teor dos emails trocados, numa breve homenagem ao amigo e a todos aqueles que o acompanham nessa saga: Zuzu, não consigo deixar de sentir a terra tremendo sob meus pés. Caminho por onde até uma semana atrás era a minha rua, edifícios destruídos, asfalto rachado, muros caídos, carros empilhados, e contínuos tremores de pequena intensidade.

São as ondas sísmicas que surgem após um forte terremoto. É a terra, são as rochas se ajeitando, à procura de um novo ponto de equilíbrio.

Na minha cidade e nas redondezas o aspecto é de bombardeio. Pelas ruas voluntários à procura de sobreviventes (a esperança de fato é a última que morre), equipes de resgate com cães, pessoas em busca do que restou de suas casas, ambulâncias com as sirenes ligadas, numa corrida entre a vida e a morte.

Ah, as flores de cerejeira tão belas e tão fugazes!

O desenho da flor de cerejeira tem seu significado no código dos samurais, que tem na flor da cerejeira o seu símbolo. O florescer da árvore de cerejeira é a mais pura manifestação de beleza na cultura japonesa, entretanto a flor enfraquece rapidamente sendo espalhada pelo vento. Esta é a morte perfeita para um verdadeiro samurai.

Hoje tivemos que deixar a cidade, o alerta foi dado e o perímetro de segurança aumentou por conta dos níveis de radiação da usina de Fukushima. Como não lembrar nessa hora de Hiroshima e Nagasaki, de Chernobyl, e até o episódio do Césio 137 em Goiânia, em 87, ano em que você estava aqui?

Para chegar ao sul a caminho de Yokohama, não foi fácil. As autoridades fecharam partes da rodovia e lançaram apelos para que ninguém tentasse entrar na região, devido ao risco de deslizamentos de neve. É meu amigo, foi preciso enfrentar as montanhas cobertas de neve. Durante um longo trecho fomos os únicos na estrada, nenhum carro numa direção ou em outra; por vezes, tivemos a sensação de que o mundo havia acabado, afora o receio de que a gasolina não fosse suficiente para chegar, tendo que permanecer ali, no meio do frio e do nada.

Atravessamos viadutos suspensos a dezenas de metros do chão, torcendo para que o sismo não os tivesse abalado. Na entrada da cidade, filas de carros chegando.

Observei que os primeiros edifícios não apresentavam sinais evidentes do terremoto, pelo menos não desse lado da cidade. Aos poucos comecei a ver rachaduras, janelas levemente entortadas, partes de teto descobertos, tijolos pelas calçadas. Pessoas caminhando em silêncio pelas ruas, ou, enfileiradas diante de supermercados com máscaras cobrindo-lhes o rosto. Apesar do cansaço, frio, sede e fome foi com muita alegria que chegamos à casa da Noriko, irmã de minha mulher.

Aqui estamos aguardando os próximos acontecimentos. A comida é escassa,o frio é intenso, mas a solidariedade é acolhedora.Fato é que estou assustado e com medo do que possa acontecer. O racionamento de energia já é esperado. O aumento do número de vítimas uma realidade. Fico me perguntando o que mais poderá acontecer? Haverá outro terremoto em breve? Outro tsunami? A radiação irá contaminar muita gente? Vai se espalhar? Vão conseguir esfriar os reatores?

O que muda com as cerejeiras? "O nosso coração", dizem os japoneses.

A flor de cerejeira é uma lembrança poderosa de que a vida é passageira, um chamado para viver e agradecer pelo presente e o despertar de um novo dia, pois este pode ser o último.





Que o povo japonês possa florescer como as cerejeiras diante de mais esta adversidade.



Shadow/Mariasun


Licença Creative CommonsA obra AS CEREJEIRAS DO JAPÃO de MARIASUN MONTAÑÉS foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição - Uso Não-Comercial - Obras Derivadas Proibidas 3.0 Não Adaptada


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