domingo, 22 de março de 2015





O OUTONO DE ALICINHA






Há algum tempo, Alicinha vinha vivendo seu outono. Não um outono real, de manhãs frescas, pássaros cantando no jardim e brisa suave; mas um outono da alma. Aos olhos dos outros, de suas primas Leninha e Maria Rita, ela ainda era a primavera em flor, colorida, alegre, delicada..., mas lá no fundo, bem dentro dela, sua estação era outra. Somente cada um sabe e conhece as nuances de seus sentimentos e de sua própria história, não é mesmo?

Falo em outono, porque ela vivia na eminência de algum grande sonho desabrochar ou inesperado acontecimento surgir, para voltar a sentir a vida pulsar com intensidade. Logo ela, amante número um da liberdade, da adrenalina em estado bruto, dos dias quentes de verão, passou aos poucos a agendar adiamentos...

À espera do que?

De uma viagem? Da promoção tão esperada? De um novo amor? Da realização de um sonho? Quando? Como? Por quê? Aquele verão havia trazido mais perguntas do que respostas. Parecia à espera de algo que lhe trouxesse a paz e a chave mágica da felicidade... e nisso, os dias foram passando... enquanto uma sensação de falta, insatisfação e ausência aumentavam.

Raras vezes, Alicinha sentira isso. Ao contrário de Maria Rita, seu viver sempre fora mais periférico, desencanado, inconsequente e imediatista. 

De repente, é como se tivesse sido sugada pela música da Rita Lee: Levava uma vida sossegada, gostava de sombra e água fresca, meu Deus quanto tempo eu passei, sem saber...”, sendo afastada cada vez mais de sua zona de conforto.
 
Após um longo período de reflexão, dias, semanas, meses, afinal, Alicinha se deu conta de que suas perguntas nada mais eram do que o aquecimento para a reconstrução de algo maior dentro de si mesma, do mesmo modo que, os dias, semanas, meses quentes de verão, são determinantes para o amadurecimento dos frutos no outono. Sua liberdade ainda estava ali, chamando cada dia para a metamorfose e a transformação, tal qual uma leve brisa soprando no rosto, indicando a direção.

Quando Alicinha se deu conta de que, assim como as estações, a vida não admite acomodação, está sempre em constante movimento e mudança, a vida começou a lhe dar respostas. Isso não é pouca coisa, não, exige muito de cada um, apesar de ser um processo libertador, assim como o amadurecer o é para os frutos, dói e exige olhar para a realidade com coragem, temperança e disposição, sem utopia. De nada adianta acelerar o processo de amadurecimento ou pretender colher os frutos ainda verdes, pois, além de estarem duros e insossos, perderão o seu tenro e delicioso sabor.

Há um momento certo na vida em que é chegada a hora de crescer e amadurecer para seguir em frente. Infelizmente, num mundo cada vez mais egocêntrico, individualista e virtual, todos crescem, poucos amadurecem. Optam por ficarem presos e acomodados ao seu verão de ilusões, fantasias e relacionamentos superficiais, sem correr riscos. 

Amadurecer é para todos? Sim, é o processo e ciclo natural da vida, assim como as estações na natureza. Porém nem todos compreendem esse processo. Não é fácil passar por essa transição: sair da casa dos pais, começar a trabalhar, administrar a própria agenda, encarar as frustrações, lidar com a perda de um grande amor, constituir a própria família, abrir mão das mordomias, tomar decisões, aceitar as próprias limitações, superar-se...

É necessário assumir novos rumos; o nascimento e a morte, a cada nova estação. 

Por ser um processo íntimo e solitário, uma vez que ninguém pode dar uma “mãozinha” ou dizer qual é o melhor caminho a seguir, o processo torna-se ainda mais intrínseco e desafiador.

Alicinha vinha ensaiando seus passos há alguns meses e, desde então, buscava estar em contato consigo mesma todos os dias sem atropelar ou antecipar os resultados e acontecimentos, como sempre fizera. É como se intuísse que somente assim, poderia tocar e realizar todo o resto. 

Nesse processo, investiu suas economias num curso de aprimoramento, voltou a dar palestras em sua área, adotou um cachorro e começou a caminhar com ele no Parque do Ibirapuera; conheceu o Douglas que costuma correr por lá, parou de tomar refrigerante e está bebendo mais água. 

Com isso, o inacreditável aconteceu. Passou a acordar duas horas mais cedo todos os dias para caminhar no parque; a estudar, inclusive, nos finais de semana; tem ido ao teatro com o novo "amigo", Douglas, já adicionado ao Facebook, abrindo novamente seu coração para o que vier; está sendo muito bem avaliada no emprego, é... a promoção parece estar próxima; ao chegar em casa, tem sempre alguém a esperá-la com muito amor e uma lambida no rosto... e... o mais importante: reencontrou o seu eixo e foco, que antes pareciam ofuscados pelo sol… 

Pode-se dizer que Alicinha vive em plenitude o seu outono da alma... para ela, as folhas não caem, elas dançam ao redor das árvores... Essa é a mágica do outono!!!





Não adianta chamar
Quando alguém está perdido
Procurando se encontrar...

Shadow/Mariasun Montañés



Licença Creative CommonsO trabalho O OUTONO DE ALICINHA de MARIASUN MONTAÑÉS está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
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