Durante uma competição como as
Olimpíadas muitas são as histórias contadas, as emoções vividas do choro à
alegria incontida numa catarse coletiva que envolve e aproxima, com tal
intensidade e profusão de imagens que chega a ser difícil escolher o melhor momento
ou a melhor partida ou o gesto mais emocionante.
O evento olímpico é mais que uma
disputa para laurear os melhores atletas, premiar os vencedores, coroar os
maiores e mais extraordinários talentos. Ele vai além. Traz o espírito olímpico
com ele, expondo o que podemos fazer de melhor, quando desejamos ser o melhor.
E nesse sentido, a Olimpíada Rio-2016 já escreveu algumas histórias
inesquecíveis, mesmo o resultado não tendo sido o pódio ou a conquista da tão
sonhada medalha olímpica.
No último dia 09, o brasileiro
Athos Schwantes e o tcheco Jiri Beran se encontraram na esgrima. O duelo estava
equilibrado ponto a ponto. Seguiu para o tempo complementar depois do empate
por 3 a 3 no período regular. Os dois adversários buscavam passar para a
próxima etapa. Athos abriu o caminho com 5 a 3, quando um ponto foi marcado
para Jiri Beran. A disputa poderia haver prosseguido. Na esgrima muitas vezes
os pontos são marcados, mas os esgrimistas não sentem onde foi o toque. Os dois
estavam entrando na linha de guarda, com o placar em 5 a 4, quando o esgrimista
tcheco disse ao árbitro: “Toquei em mim
mesmo por acidente”. O placar voltou
a ficar em 5 a 3. Logo a seguir, Jiri Beran fez o quarto ponto. De arrepiar!!! Terminado
o tempo, o brasileiro passou para a fase seguinte por 8 a 6. Jiri Beran foi
eliminado. Mas, nesse caso, o placar pouco importou.
O esgrimista tcheco teve uma
atitude que poucos teriam, verdade seja dita. Essa é uma passagem que merece
ser lembrada. Uma Olimpíada não é feita apenas de recordes e daqueles que sobem
ao pódio. Ela é feita do espírito
olímpico. E essa é a lição que Jiri Beran deixa para muitos. Abandonou a
disputa de cabeça erguida, sem trapacear, com a certeza de que cumpriu o seu
papel, lutou com dignidade e foi superado por alguém que naquele dia e naquele
momento pontuou mais. Isso é ter cultura
esportiva. Um campeão, sem dúvida!!!
Nesse sentido, o que dizer então
da história da amazona holandesa Adelinde Cornelissen e de seu cavalo Parzival!!!
Na manhã de terça-feira, dia 09, um dia antes da competição, ao
chegar ao estábulo para treinar com seu cavalo, Adelinde notou que o animal não
estava bem. Parzival estava com febre de 40°C e dificuldades para engolir. Após consulta com os veterinários, estes concluíram que ele
havia sido picado por um inseto, aranha ou algum tipo de animal que produz
toxinas. Depois
de receber soro e de ser submetido a exames, o tratamento aplicado começou a
produzir efeitos. Parzival teve uma melhora gradual ao longo das horas seguintes até
ser liberado para competir pelos veterinários e pela federação.
A dupla conquistou em Londres-2012 as medalhas de bronze em equipe e prata, na modalidade individual.
A delegação holandesa chegou a pedir para a Federação Equestre Internacional (FEI) o adiamento da prova que envolvia sua participação por mais um dia para que ele tivesse mais tempo para se recuperar. Porém, a solicitação foi negada.
A delegação holandesa chegou a pedir para a Federação Equestre Internacional (FEI) o adiamento da prova que envolvia sua participação por mais um dia para que ele tivesse mais tempo para se recuperar. Porém, a solicitação foi negada.
Diante disso, Adelinde passou a viver um dilema: "O que fazer? Ele está apto agora, mas eu sei o que aconteceu ontem e o que ele passou... Ninguém do meu país para me substituir caso eu desista...". Preservar o cavalo de 19 anos e deixar a equipe na mão, ou, entrar na arena e competir?
No dia da competição, Adelinde e
Parzival, se apresentaram para disputar a prova de hipismo de adestramento. A amazona
fez uma saudação respeitosa ao público e, a seguir, deixou a arena. Adelinde optou
por desistir de uma medalha quase certa e proteger o animal, a competir e
colocar em risco a sua saúde. Foi assim que ela e Parzival se despediram da
Rio-2016.
Postou ela em sua rede social:
“Quando nós
entramos, eu senti que ele estava dando o seu melhor, e sendo o lutador que é,
ele nunca desiste... Meu amigo, meu parceiro, o cavalo que me deu tudo por toda
a sua vida não merece isso. Então eu deixei a arena... #doiscorações”.
Com a ausência de
Adelinde Cornelissen e de Parzival, a Holanda terminou a prova na quarta
colocação. Se competisse, poderia ter conquistado uma medalha. Mas a amazona
não tem a menor dúvida de que tomou a decisão correta. “Dois corações”. Adelinde saiu de cena deixando para todos nós uma linda lição de amor aos animais.
Haverá gesto mais
representativo do espírito olímpico? Adelinde não apenas emocionou ao abandonar
os Jogos Olímpicos para poupar Parzival, seu companheiro de jornada e vitórias,
mas demonstrou que há outros valores que se sobrepõem a uma disputa, medalha ou
pódio. Um verdadeiro campeão também é feito de gratidão e respeito.
Assim como também é feito
de superação.
Ontem, dia 14, foi um dia
especial para a ginástica artística brasileira. Dois de nossos ginastas subiram
ao pódio. Diego Hypolito - após três Olimpíadas - conquistou a sua primeira
medalha olímpica: a prata, e, o sargento Arthur Nory - em sua
primeira Olimpíada - conquistou a de bronze, a primeira medalha da FAB.
Guerreiros!!!
A trajetória
de Diego Hypolito para chegar à prata não foi nada fácil. Pode-se dizer que
essa foi a medalha da virada de oito anos de espera, frustração, descrédito e determinação. Em 2008 quando
disputou sua primeira Olimpíada em Pequim, ele era o franco favorito ao ouro e
à primeira medalha olímpica na modalidade para o Brasil. Trazia com ele o
título de bicampeão mundial e havia se classificado em primeiro lugar nas
eliminatórias para a prova de solo. Parecia não haver adversário à sua altura. O
que poderia dar errado?
No entanto, no último movimento de sua apresentação e da pressão para ser o melhor do mundo, desequilibrou-se e caiu, perdendo o pódio
e a tão sonhada medalha. Tenaz, continuou a treinar tentando superar a
frustração da derrota. Assim, chegou à Olimpíada de Londres em 2012. Mais uma
vez, agora na fase classificatória, no momento derradeiro, voltou a cair,
ficando fora da final. A partir de então, Diego Hypolito começou a
declinar. Sobrevieram duras críticas ao seu desempenho, foi demitido do Flamengo
onde treinou por 19 anos e mudou-se para São Paulo para poder continuar
treinando “de favor”, no Clube Pinheiros. Afastado da família e dos amigos, entrou
em estado de depressão, chegando a ser internado.
Para seguir em frente Diego
Hypolito teria que renascer das cinzas como a Fênix. Com o apoio da família, do
técnico e companheiros do novo clube voltou a reinventar-se, ganhou confiança e esperança no sonho de medalha, desta vez, na Olimpíada a ser realizada
em seu país. Preterido por muitos, viu sua redenção começar no Mundial de
Pequim em 2013, quando escalado como segundo reserva e ante a contusão de dois
dos principais atletas da ginástica, ele alcançou o bronze. Era a sua
primeira medalha depois de tantos reveses e dificuldades, havia chegado o momento da virada! Mesmo assim, poucos apostavam no atleta, tendo sido o último nome confirmado para a
Rio-2016.
Até que, neste domingo, Diego Hypolito fez
uma apresentação primorosa na final do solo, limpa, sem erros, escorregões ou
quedas. Oito anos após a caída que lhe tirou o favoritismo e o ouro, o sonho
realizado, a medalha de prata com gostinho de ouro. Seu sonho a partir de
agora? A Olimpíada de Toquio-2020.
O espírito olímpico também é feito de coragem, fé e determinação.
No entanto, a vitória de Diego
Hypolito foi empanada pela falta de cultura
olímpica da torcida brasileira. Torcer e vibrar pelos atletas do seu país é algo muito diferente
de vaiar os adversários ou de comemorar os erros cometidos pelos outros atletas, como se
viu ontem na apresentação dos ginastas e se tem visto em outras modalidades. Que espetáculo
lamentável!!!
Isso é feio, é ser tacanho, é ter
falta de educação, é ter falta de civilidade e de fair play. Como se poder ver pelas histórias aqui contadas,
uma Olimpíada reúne os melhores do mundo em cada modalidade. Todos eles, sem
exceção, se dedicaram à exaustão, enfrentaram dificuldades, treinaram horas a
fio para chegar a participar do maior evento esportivo do planeta e merecem ser aplaudidos.
Uma torcida que vê no gesto de
Jiri Beran uma atitude burra ao invés de ver a força do seu caráter; que
comemora a desistência de Adelinde ao invés de ver a grandeza de sua atitude; que
vaia os adversários, ao invés de reconhecer que estão tendo o privilégio de ver
os melhores do esporte de cada país e de saudá-los pelo lindo espetáculo; ou,
que “tira onda”, menospreza, urra de satisfação quando o ginasta estrangeiro erra o movimento, ao invés
de enxergar e de sensibilizar-se com os anos e anos de treino, esforço e de
preparação que aqueles jovens amantes do esporte tiveram para chegar até ali;
uma torcida dessas, só denigre o país anfitrião e demonstra o quanto os
brasileiros têm que aprender sobre o verdadeiro espírito olímpico.
Ver os oponentes dos brasileiros como inimigos é
ter uma visão muito estreita do que seja competir. Os Jogos Olímpicos por si só
representam a integração dos povos, a paz. As contendas não são de vida e morte,
mas, de adversários que se enfrentam para ser o melhor dentre os melhores, sendo que, por vezes, nem sempre o melhor é premiado com a medalha ou o pódio.
Há sempre a motivação de querer ganhar. Todo mundo tem isso.
Mas um campeão precisa, em sua atitude, uma motivação muito além do desejo da vitória.
Shadow/Mariasun Montañés
O QUE UM ATLETA NECESSITA PARA ALCANÇAR A MEDALHA DE OURO OLÍMPICA? - PARTE II de MARIASUN MONTAÑÉS está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.