domingo, 15 de fevereiro de 2015






    O CARNAVAL SE COMPRA?





O Carnaval brasileiro sempre foi conhecido como uma festa pagã popular, cuja origem remete ao Entrudo que aqui chegou com as primeiras caravelas da colonização, no Rio de Janeiro. Vem dessa época a figura do Rei Momo, inspirado nos bufos, atores portugueses que costumavam representar para divertir aos nobres.

No começo do século XX, ritmistas acompanhavam os blocos dos sujos tocando cuíca, pandeiro, reco-reco e outros instrumentos. Máscaras e fantasias coloriam as ruas ao som de marchinhas, empolgando e atraindo mais e mais foliões por onde passassem.

Eram os blocos carnavalescos formados por colombinas e pierrôs apaixonados... onde muitos amores surgiam, para depois se acabarem na quarta-feira de Cinzas.

Sem tardar, alguns desses blocos foram crescendo e crescendo, até se transformarem nas escolas de samba, substituindo as velhas marchinhas pelo samba. Com elas vieram a comissão de frente, alas, mestre sala e porta bandeira, passistas, ritmistas, tudo ao som de uma afinada bateria e de puxadores de samba, que fizeram e fazem historia.

Elas abriram passagem das ruas para a avenida do samba, onde a criatividade de seus enredos, beleza de suas fantasias e carros alegóricos, harmonia das alas, em especial a da tradicionalíssima ala das baianas e do gingado de suas passistas passaram a resplandecer e se tornaram um espetáculo imperdível para turistas e as lentes da televisão. Um dia foi insuficiente para tamanho espetáculo.

É impressionante a diversidade e o talento necessários para contar e desenvolver um enredo a cada ala por meio de alegorias, adereços, fantasias e um samba enredo.

Um ano inteiro é o tempo para que após exaustivos e cansativos ensaios, horas e horas despendidas na construção de carros alegóricos e na confecção de fantasias... detalhe a detalhe, tudo minuciosamente calculado, nada dê errado no dia do desfile.

Hoje o que se vê nas escolas de samba, está bem longe daqueles grupos que se fantasiavam de índios, piratas, bailarinas e arlequins com fantasias improvisadas feitas em casa; gasta-se muito tempo e dinheiro no espetáculo, que é comercializado para vários países por meio da televisão e acompanhado em tempo real pela internet.

O Carnaval de antigamente era compartilhado, dançado, pulado, brincado. O Carnaval de hoje é de passarela, desfilado; Carnaval assistido, paga-se para ver. O modelo se estendeu a todas as capitais brasileiras, excetuando-se duas: Salvador na Bahia e as cidades de Recife-Olinda, em Pernambuco.

O Carnaval do Rio de Janeiro está atualmente no Guinness Book como o maior Carnaval do mundo, com um número estimado de dois milhões de pessoas, por dia, nas ruas da cidade.

O desfile de cada escola é um trabalho comunitário. As escolas de samba, desde seu surgimento, há mais de setenta anos, sempre tiveram como tema de seus enredos, assuntos referentes ao Brasil, concentrando seus esforços para representar grandes eventos históricos e seus heróis, obras literárias e seus autores; lendas, mitologia e simbologia indígenas e/ou africanas; e, mais recentemente, as belezas e as maravilhas das cidades e Estados  brasileiros. Muitos foram os temas que já desfilaram na passarela do samba: da historia do Brasil e da humanidade, a personalidades ilustres que marcaram a historia, sendo que, as escolas mais tradicionais, já homenagearam até o próprio Carnaval. Por trás delas, sempre estiveram os bicheiros do Rio de Janeiro, perante a lei, contraventores; perante suas comunidades, lideranças.

No entanto, nunca, em momento algum, uma escola de samba chegou a “vender” seu enredo e desfile para atender aos interesses e dar visibilidade a um ditador genocida e dono de escravos de outro país. Pois é... este ano, uma das maiores escolas do Rio de Janeiro, a Beija Flor de Nilópolis, elevada a sua grandeza por Joãozinho Trinta, recebeu 10 milhões de reais de Teodoro Obiang Nguema Mbasogo da Guiné Equatorial, a maior quantia já oferecida até hoje para desenvolver um enredo no Carnaval carioca. O presidente do país africano é um dos líderes mais ricos do continente, dono de imóveis em diversos países, inclusive no Brasil, muito embora seu povo seja um dos mais pobres do mundo e, como se não bastasse, segundo ainda consta, a Agremiação de Nilópolis teria tido que modificar versos do samba enredo, para atender ao capricho e pedido do ditador.

Para quem não sabe ou não conhece, a Guiné Equatorial é um dos países mais pobres do continente africano, cuja população sofre com a fome. Segundo o Relatório da Human Rights Watch publicado em 2014, ocupa o 136º lugar, em um total de 187 países, no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU. Apenas 44% da população têm acesso à água potável.  Os gastos do governo com educação e saúde, juntos, não passam de 3% do PIB. O relatório cita ainda casos de tortura, detenções arbitrárias e cerceamento à liberdade de imprensa. Acrescente-se a isso que Teodoro Obiang, como todo ditador, se impõe no poder há 35 anos.

E enquanto ele é acusado pela organização Human Rights Watch por violações dos direitos humanos e irregularidades no processo eleitoral, seu povo sofre toda sorte de carências, e seu filho, o vice-presidente Teodoro Obiang Mangue, é considerado foragido pela Justiça Francesa, condenado por crimes de lavagem de dinheiro e desvio de recursos públicos; ele dá à Beija Flor - e em detrimento de seu povo - 10 milhões de reais para a realização de um enredo que massageie seu ego e faça propaganda de si mesmo, no embalo de "Um Olhar sobre a África e o Despontar da Guiné Equatorial. Caminhemos Sobre a Trilha de Nossa Felicidade"... nada mais falso e ilusório!!!

Para a juíza Denise Frossard "esse é um dinheiro que traz a interrogação de ter vindo com sangue. A simples dúvida já seria mais do que suficiente para recusar...”.

Sinceramente, é o fim!!! Na maior festa democrática do país o episódio mancha a festa e a organização do Carnaval.

Penso que é o momento de refletir sobre os valores culturais que queremos para o nosso país. Será que vale tudo no Carnaval? A ressaca e a quarta-feira de Cinzas sempre vêm. 

Vale ressaltar que o que vemos em meio às plumas e paetês, nada mais é do que o espelho de como a sociedade vê a si mesma e pode ser vista aqui e lá fora. Como nos vemos e queremos ser vistos, é a pergunta que não quer calar.

 

 



Shadow/Mariasun Montañés



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O trabalho O CARNAVAL SE COMPRA? de MARIASUN MONTAÑÉS está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.


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